quinta-feira, dezembro 02, 2004

Filme

Lentos, dois olhos vagueiam no rio;
Perfilados, dois medos verdes aguardam o frémito
Da violência do reconhecimento.

Outrora, perdi-me nas ramagens
Da dúvida e da desesperação.
Vivia de bolsas atónitas
E alimentava-me do céptico licor.
E cria não crer.
E queria não querer crer.
E cria não querer crer.

Neste minuto, vogo na maré das horas,
Preso da surpresa,
Em cada instante, suspeito uma vida…

Mito, 02-12-2004

segunda-feira, novembro 29, 2004

Um país à espera do presidente

Vem-me à memória a célebre alusão à “angústia do guarda-redes no momento do penalty”. É conhecida a angustiosa dicotomia que se estende ao marcador da grande penalidade. Para este, a baliza parece imensamente estreita; para o guardião, assemelha-se desmesuradamente larga. Naqueles segundos antes do “castigo máximo”, cada um dos intervenientes vive a sua angústia e o tempo parece preguiçar, sadicamente. E o público suspende a saliva.
Da mesma forma, se me afigura a presente relação entre o Presidente da República e o primeiro-ministro “incubado”, órfão de Barroso e de legitimidade eleitoral. Parecem estudar-se meticulosamente, estes dois contendores, atentos a cada pequeno gesto, despertos para cada piscar de olhos, presos de um leve brilho matreiro no olhar alheio.
Cada um vive a angústia à sua maneira: o primeiro-ministro vai penando, com a espada de Dâmocles pendente sobre a recém-prateada cabeleira; por seu lado, o Presidente encarna na perfeição uma alegoria da sina de cada homem ser escravo do seu caminho. Poderia dissolver a assembleia, devolvendo ao “povo” a faculdade de escolher os próximos governantes, mas há indícios que levam a crer que, no “seu alto critério”, o tempo não é ainda chegado. Talvez anseie uma melhor preparação do principal partido da oposição. Ou talvez não queira ser ele o rastilho de uma crise que adivinha no nosso sistema político. Uma crise ainda pior que a que vivemos presentemente. Uma crise que adviria da constatação de que era impossível sair da crise, já que as alternativas democráticas se poderiam mostrar impotentes para a debelar. O nevoeiro instalado veio para durar; ameaça tudo cobrir com seu manto diáfano e talvez mesmo sufocar os ponteiros dos relógios.
Entretanto, o país continua adiado, à espera do Presidente. E este azeda de dia para dia, consciente de não ter a poção mágica e proibido de o confessar.

segunda-feira, novembro 22, 2004

As raízes do problema

A ideia de que o Estado deveria responsabilizar-se pelo ensino da língua dos imigrantes é recorrente, mas foi-me avivada pela excelente entrevista que a Pública de hoje traz com o escritor libanês Amin Maalouf, autor do célebre Samarcanda ou do As Cruzadas Vistas pelos Árabes.
Não resisto a transcrever aqui umas linhas do romancista e ensaísta, retiradas da sua mais recente obra: Origens.

“Outros que não eu teriam falado de ‘raízes’… Não emprego esse vocabulário. Não gosto de ‘raízes’ e da imagem ainda menos. As raízes enfiam-se na terra, contorcem-se na lama, crescem nas trevas, mantêm a árvore cativa desde o seu nascimento e alimentam-na graças a uma chantagem: ‘Se te libertas, morres!’. As árvores têm de se resignar, precisam das suas raízes; os homens não. Respiramos a luz, cobiçamos o céu e quando nos metemos na terra é para apodrecer.”

domingo, novembro 21, 2004

Língua Estrangeira III

Muitas vezes me interrogo por que razão o Estado tem de assegurar e financiar a formação religiosa nas escolas. A partir de um número mínimo de alunos, de que não me ocorre a precisão, garante-se o funcionamento de aulas para todas as confissões.
Numa sociedade que se pretenda desenvolvida, é desejável que se torne cada vez mais nítida a separação entres os ditos poderes temporais e espirituais. Ou seja, Estado e Igreja devem permanecer em esferas individualizadas e sem grandes promiscuidades. Em nome da liberdade do culto religioso e de expressão. Em Portugal, o Estado é (tendencialmente) laico e democrático. Por outro lado, vejo com tristeza a forma como os novos imigrantes (de África, do Cáucaso, por exemplo) se (des)integram na nossa comunidade escolar. Os chamados “imigrantes de leste” mostram até grande capacidade de adaptação, pois têm uma matriz cultural em que a escolaridade tem um papel muito mais longo e intenso que na nossa própria.
Porém, se estes imigrantes devem fazer um esforço para aprenderem a nossa língua e idiossincrasia, parece-me igualmente uma obrigação do Estado contribuir para que os filhos desses imigrantes não percam a sua identidade e conheçam a sua própria língua de origem. Por todos os motivos e mais este, que até pode agradar a mentes mais xenófobas: para mais facilmente se reintegrarem no pais de origem, se a ele quiserem regressar.
Por conseguinte, parece-me que seria bem mais proveitoso para todos, se, em vez das tais aulas de teor religioso (já temos a disciplina de Formação Cívica), esses créditos fossem utilizados no funcionamento de aulas de línguas de origem dos imigrantes, a partir do mesmo número mínimo de alunos. Com o tempo, talvez nos espantássemos com a quantidade de alunos autóctones a pedirem inscrição nas mesmas aulas. Talvez mesmo professores…e por que não como acção de formação? Não seria benéfico para a relação pedagógica com esses alunos e para o próprio enriquecimento intelectual dos docentes?
Não podemos continuar a sonhar com a quimera perdida de nos termos aberto ao mundo, enquanto permanecemos fechados na nossa desconfiança e tacanhez.
Muitas vezes me interrogo por que razão o Estado tem de assegurar e financiar a formação religiosa nas escolas. A partir de um número mínimo de alunos, de que não me ocorre a precisão, garante-se o funcionamento de aulas para todas as confissões.
Numa sociedade que se pretenda desenvolvida, é desejável que se torne cada vez mais nítida a separação entres os ditos poderes temporais e espirituais. Ou seja, Estado e Igreja devem permanecer em esferas individualizadas e sem grandes promiscuidades. Em nome da liberdade do culto religioso e de expressão. Em Portugal, o Estado é (tendencialmente) laico e democrático.
Por outro lado, vejo com tristeza a forma como os novos imigrantes (de África, do Cáucaso, por exemplo) se (des)integram na nossa comunidade escolar. Os chamados “imigrantes de leste” mostram até grande capacidade de adaptação, pois têm uma matriz cultural em que a escolaridade tem um papel muito mais longo e intenso que na nossa própria.
Porém, se estes imigrantes devem fazer um esforço para aprenderem a nossa língua e idiossincrasia, parece-me igualmente uma obrigação do Estado contribuir para que os filhos desses imigrantes não percam a sua identidade e conheçam a sua própria língua de origem. Por todos os motivos e mais este, que até pode agradar a mentes mais xenófobas: para mais facilmente se reintegrarem no pais de origem, se a ele quiserem regressar.
Por conseguinte, parece-me que seria bem mais proveitoso para todos, se, em vez das tais aulas de teor religioso (já temos a disciplina de Formação Cívica), esses créditos fossem utilizados no funcionamento de aulas de línguas de origem dos imigrantes, a partir do mesmo número mínimo de alunos. Com o tempo, talvez nos espantássemos com a quantidade de alunos autóctones a pedirem inscrição nas mesmas aulas. Talvez mesmo professores…e por que não como acção de formação? Não seria benéfico para a relação pedagógica com esses alunos e para o próprio enriquecimento intelectual dos docentes?
Não podemos continuar a sonhar com a quimera perdida de nos termos aberto ao mundo, enquanto permanecemos fechados na nossa desconfiança e tacanhez.

quarta-feira, novembro 17, 2004

O Direito à divagação (deste, Mário Soares nunca falou)

Parapoema

Pessoa e Platão
Distantes no tempo linear
Vieram a recusar
As coisas como são

Como são
As coisas que são
Como são?

Primeira resposta ao ser que não é
A platónica ideia luta com o devir.
Se tudo muda, como é?
Tudo corre, tudo vai a fugir…

Como são as coisas que são
Como são?

Como pode o mundo
Não ser mais que isto?
Como pode o profundo
Ser só o que é visto?

A pulga salta
A dúvida persegue e mina
Até o que não é falta
Até o que falta domina

Como pode a imanência
Facultar o que sentimos?
Como pode a existência
Não chorar se não nos rimos?

Pode a arte imitar?
Pode a arte entrever?
Pode o poeta adivinhar
O que nunca vai morrer?

Ser poeta é cantar
O mundo que está vedado
Ser poeta é não suportar
A dor de estar calado

Ser poeta será ser?
Se o poeta é fingidor
Só pode parecer
E nunca ser o trovador

Pessoa e Platão
Poetas que parecem
Pessoas que não são
Ideias que não esquecem

Mito, 23-08-2000

quinta-feira, novembro 11, 2004

E não há duas sem três

O Castelo Dourado III

A doce prisão me era prometida,
Mais doce que o Amor, o esquecimento:
Viver na concha nunca invadida,
Fundir sentimento e pensamento…

Voltar ao útero imaginário,
Anular o eterno retorno,
Ondular num opiário,
Acalentar um fogo morno.

- Isso que ofereces é vegetar.
A partida foi dada: a meta é certa,
Não são permitidos intervalos.

Como não te consegues aniquilar,
Deixa ficar sempre a porta aberta…
Quanto aos sonhos: é amá-los!

Mito, 23-08-2004

Um mal nunca vem só...

O Castelo Dourado II

O Castelo, risonho e feliz,
Ao ver-se dono do seu dono,
Arma a mesura e diz:
- Aqui dormirás eterno sono.

Estando acordado e delirante,
Aqui, terás uma vida imaculada,
Aqui, todo o momento e instante
Serão tudo e não serão nada!

-És castelo de ópio e de nevoeiro,
O teu embalo é doce e sedutor,
És puro sonho e vão desejo!

-Eu sou o teu âmago verdadeiro,
Fora da muralha, só existe a dor,
Aqui, nunca a morte te dará seu beijo!

Mito, 23-08-2000

quarta-feira, novembro 10, 2004

Por falar em poemas que dão sono...

SONETO DO CASTELO DOURADO

Encontrei um castelo dourado,
Altaneiro, lindo e reluzente,
Nas páginas do meu fado,
Ao folheá-las, indigente.

Resolvi entabular conversa
Com a alegoria fulgurante.
Ela estendeu um tapete persa
E disse-me, em voz de quiromante:

- Eu sou o teu sonho sempiterno,
Desde o início dos tempos te espero.
Entra: estão prontos os aposentos!

- Não sei se és o céu ou o inferno,
Só sei que o que eu mesmo quero
É morar em ti em todos os momentos...

Mito, 23-08-2000




segunda-feira, novembro 01, 2004

In Memoriam

Hoje, fui levar flores aos meus mortos.
Ao contrário dos últimos anos, em que uma cínica chuva tem acompanhado este Dia dos Defuntos, a manhã e tarde de hoje foram rasgadas por um sol faiscante, talvez ateu…
No cemitério, centenas de vultos flutuavam por sobre os jazigos, depositando ramos e acendendo velas. Lágrimas discretas e genuínas acompanhavam gestos antigos, como o de beijar a parte inferior da ponta dos dedos, fazendo-os, depois, ao de leve, aflorar as fotografias ou nomes dos entes perdidos. Perdidos, não, que não morreram, continuam vivos na nossa memória. Que significa estarem vivos na nossa memória? Significa que estão mortos. Ou que estarão peculiarmente vivos, enquanto forem vivos os que deles se lembrem directamente e depois os outros que lentamente têm a função de remexerem no brasido da fogueira até que uma última cinza incandescente se eleve na brisa, fuja do tempo e ganhe a eternidade.
A arenga do pároco no microfone soa estranhamente na mente dos presentes; são palavras que, de tantas vezes repetidas, perderam o sentido e a inteligibilidade. Vagamente familiares, são só chicotadas na sobriedade dos ciprestes. Apenas a música e as vozes irmanadas fazem crescer nos corações um sentimento de pertença e de comunhão de um mistério redentor e reconfortante. As notas do órgão são degraus das escadas do céu e a cada fôlego engole-se uma dose de doce eternidade. Poderíamos ficar para sempre, perfilados no cemitério, companheiros dos ciprestes, levemente ondulados pela melodia quente e monótona.
A voz do padre-cantor, que entoa um versículo com denodo, quebra o encantamento em catadupas de cristal. Os corações voltam a sofrer.
Ao lado, alguém caça e os ecos de repetidos tiros ziguezagueiam, perplexos, por entre a multidão perfilada. Ao lado, a morte continua a sua marcha natural e inelutável. Mais tiros, mais tiros. Os olhos procuram-se, interrogam-se, lamentam-se: “Hoje, ninguém devia caçar.”
O “Graças a Deus” final desmobiliza toda a gente. Cumpriu-se a morte. Saiamos do cemitério para continuar a cumpri-la.
Pai, mãe, estou aqui e continuo sozinho. Sozinho, como só todos podemos estar.
Uma saudade rochosa recortou o meu ser em mil pedacinhos, fazendo-me vaguear pelas ruas, batendo com força contra as paredes. Entrei numa pastelaria e inexplicavelmente pedi uma bola de Berlim. O sabor devolveu-me a infância e a infinitude do meu mundo.

segunda-feira, outubro 11, 2004

Não resisti a uma trip

Metamorphose, Escher

Eschermorfoses

Metamorfoses múltiplas
Abrem uma dança reticulada no crepúsculo
Por losangos íngremes
Deixo-me escorregar até às estrelas
Regresso ao límpido xadrez
E atravesso um pântano com as salamandras
Branco e negro degladiam-se no ar
Zumbidos ensurdecedores estilhaçam o dia e a noite
E mergulham nas águas geladas
Peixes hirtos logo se elevam no ar
E voltam ao princípio para morrer
Loucas andorinhas fundem-se em drakkars
Regresso à claridade das trevas
Lá em baixo de novo os lúcios se fazem corcéis
Missivas triangulares adejam nos nimbos anunciando vôos impossíveis
Escamas e penas hesitam-se no lago
Colibris de amanhecer edificam-se na encosta
E descem à cidade mítica
No porto tisnado um tabuleiro se espraia por onde não fomos
Ainda
Sardónico um xeque-mate ri-se em caleidoscópio
Tranças de saudade adormecem em
Múltiplas metamorfoses

Bem-aventurado, Escher, pela viagem que fizemos

Mito, 11 de Outubro de 2004

quarta-feira, outubro 06, 2004

Somos um país de poetas

E como tal, avolumam-se as probabilidades de, tal como hoje, por aqui pontificarem umas titubeantes divagações poéticas.

Frescor

Frescor sempre perene
Nasce dos teus olhos Serpentina minha
Um instinto muito muito fundo espreguiça-se nos teus braços
Pirilampos de desejo rebrilham nos teus seios
Uma promessa de morte e ressurreição
Um convite de fusão com o universo e nada nada desejar
Há papoilas na tua boca ávidas de histórias
Não vás embora tão cedo minha Serpentina
Vem iluminar o meu carnaval

...

O luar nunca brilhou como hoje
E eu nunca voei tanto sem me cansar...

Mito, Abril de 2004

segunda-feira, outubro 04, 2004

Universo Paralelo

Começou hoje a Quinta das Celebridades, assim chamada porque vai proporcionar a fama a várias personalidades que nela vão participar, até hoje quase incógnitos cidadãos e cidadãs.
Uma das poucas já conhecidas figuras é a Cinha Jardim, recauchutada no rosto e com uns rutilantes marmelos silicónicos na exuberância do decote. A meio da conversa, lançou-se para o ar a hipótese de Cinha vir, um dia, a ocupar o palácio presidencial. Pressuroso, José Castelo Branco desfez-se em aplausos a tão feliz ideia, certamente já se imaginando mandatário nacional da candidatura.
Senti uma avassaladora vontade de me rebolar pelo chão em contorções de riso, mas… um frémito inquietante tolheu-me o gesto. Não te rias – disse-me a voz interior – não vês que atrais a desgraça? Tu não vês que o ex-namorado já foi a primeiro-ministro? E não faltou já quem propusesse Felipe Scolari para as mesmas funções presidenciais?
Estás proibido de teres ideias mirabolantes. Quantas vezes já te disse que neste universo paralelo onde caíste tudo pode acontecer?

quinta-feira, setembro 30, 2004

Por vezes a ficção supera a realidade


Rebuscando nos meus canhenhos, encontrei um texto de ficção que pretendia vaticinar o desempenho dos futebolistas lusos, no Mundial de má memória de 2002. Serve o "textículo" para compensar a falta de inspiração que me atacou nos últimos tempos, assim como para ilustrar uma rara ocorrência em que a realidade ficou anos-luz atrás da ficção. Desnecessário será lembrar que os ditos atletas vieram para casa ao fim de 3 jogos, não sem antes terem protagonizado o burlesco episódio do "soco no árbitro".
Perdoai-lhes, senhor, que eles não sabem o que escrevem...

O mago da bola de Cautchu

Tive um sonho a noite passada. Com números. Foi assim:

Deambulando por uma vila de Vagos mítica, envolta em denso nevoeiro, passo por uma janela onde se podia ver um letreiro com os seguintes dizeres:
PROFESSOR
MURTA KARMA
Licenciado em aritmomancia
Resultados desportivos
Totobola
Previsões para toda a época
Descontos especiais para grupo

Ferido pela curiosidade, resolvi-me a entrar. No vestíbulo, encontrei uma senhora idosa que me levantou os olhos ensonados e baços, pigarreou e disse sibilantemente em sotaque brasileiro: “O Professor Karma já vem. Murta Karma.” E sumiu-se por entre um cortinado de púrpura desbotada.
Quando, meia-hora depois, já me dispunha a abalar para outra freguesia, surge a velhota novamente, agora com um ferro de engomar dos antigos, cheio de brasas incandescentes. Mandou-me entrar e seguiu-me silenciosamente, como quem desliza. A sala estava parcamente mobilada; apenas duas cadeiras e uma mesa de tosco pinho, no centro da qual se destacava uma luzidia bola de futebol apoiada numa base dourada.
Reclinado na cadeira, um cinquentão de longas barbas grisalhas e olhos negros coruscantes fitava-me com o seu olhar magnético e, sem nada dizer, parecia estudar-me desdenhosamente.
Interrompi o longo silêncio timidamente: “Gosto muito do seu turbante...”
Num ápice, o mago retirou de debaixo da túnica não sei que pós e lançou-os sobre o brasido que a mulher deixara no chão, provocando uma fumarada impenetrável, enquanto proferia cavas e misteriosas palavras.
A ladainha foi interrompida dramaticamente por um violento acesso de tosse que prostrou o esotérico por terra. Abri a janela e ajudei-o a recuperar.
“Tenho que me deixar destas coisas ou ainda arranjo um problema pulmonar. O Diabo é que as pessoas só se impressionam com estes truques de pacotilha.”
Retorqui-lhe: “Poupe-me o folclore e vamos ao que interessa. A minha curiosidade vai toda para a prestação da selecção nacional no Mundial 2002.”
“Ah, caro amigo, está a falar com a pessoa indicada. Queira sentar-se.”
“Diga-me uma coisa; esta bola não deveria ser de cristal?”
“Ui, custam os olhos da cara! Além disso, esta é melhor para o negócio do desporto. São os meus melhores clientes. É malta muito supersticiosa, sabia? Esta bola é uma ideia de um sobrinho meu, que anda em Marketing. Muito bem, perscrutemos então a bola...”
Momentaneamente, a sala começou a escurecer e o esférico começou a libertar um brilho verde iridiscente. Para meu assombro, começam a surgir números: primeiro, o 3; depois, o 7; a seguir, o 10; e, por fim, o 21.
“Que significa isto?”
“É obvio, não vê? Nesta sequência de números está a fórmula do sucesso da selecção. Eu sigo o ensinamento de Pitágoras, que disse: «tudo é formado de acordo com o Número.» Só temos que os saber ler. Vejamos;
O 3 é o resultado do 1, que é o céu, e do 2, que é a terra. Significa a perfeição e a totalidade, como, por exemplo, a Santíssima Trindade.”
Esta é a terceira vez que participamos num Mundial, na primeira vez foi o céu, com grande sucesso do Eusébio e companhia, na segunda, os Infantes voaram mais baixinho, junto à terra. Agora, será a vitória final.”
“Mas - interrompi - quem enverga esse número é o Abel Xavier e não lhe vejo grande perfeição. Por causa da mão dele, foi-se o Europeu.”
“Meu caro, o caminho da perfeição é uma escada em caracol com muitos degraus partidos. O número 3 é o número de Deus, e a mão de Abel desta vez marcará um golo. Será uma reedição da famosa “mão de Deus” interpretada por Maradona. Aliás, aquela cor de cabelo é precisamente para isso, para ofuscar a visão do árbitro.”
“Então e o 7?”
“Sete são as esferas celestes e os graus de perfeição, assim como as maravilhas do mundo. Sete serão os jogos até à final, onde Figo, o 7, atingirá o seu maior esplendor. O 10 é o regresso à unidade, depois dos 9 algarismos, é Rui Costa, motor anímico e estratega da equipa. 21 é o símbolo da maturidade, embora esteja personificado na juventude do ponta-de-lança da Fiorentina. É um fechar de 3 ciclos de 7 (os jogos até à final) e simboliza a plenitude, o objectivo conseguido. Será Nuno Gomes a marcar o golo que garantirá a Taça! E há mais, caro amigo! Some todos os algarismos e faça a prova dos nove.”
“3 e 7, são 10, mais 1, 2 e 1, são 14; noves fora, 5.”
“Deve também juntar o zero, para fazer 50.”
“E que significa o 50?”
“É a conta, perspicaz cliente. Deve-me 50 euros.”
“E como é que eu sei que tudo isso é verdade?”
“A verdade vai começar a manifestar-se nos seus dedos do pé. Não a sente?”

Acordei com uma dor aguda no dedão do pé. Maldito gato, que não perde o hábito de me despertar desta maneira.

Qualquer semelhança entre o sonho e a realidade é pura coincidência. Será?

terça-feira, setembro 28, 2004

O teu sarcasmo

A pedido de várias famílias (a quem já gratifiquei principescamente), lanço no éter mais um poemeto de minha autoria sobre um dos venenos mais poderosos da convivência humana.

Bem hajam

O teu sarcasmo

Por detrás da cortina do sarcasmo
Que medos se escondem nervosos?
Que larvas habitam os túneis da impaciência?
Que ecos de ideal perdido numa noite de batota?
Que passos estropiados pedem esmola?
Que sonhos asfixiados dentro de frascos?
Que persianas de remorso escancaradas?
Que agonias embrulhadas em mudez?
Que armadilhas de sorriso embalsamado?
Por dentro dos óculos baços de incompreensão
Que térmitas de vingança subterrânea?

Só pode ser um temor letal no espelho

Mito, 20-09-2003

segunda-feira, setembro 27, 2004

E vai daí, deu-me vontade de partilhar com algum eventual cibernauta a prosa desempoeirada de Katherine Vaz, um excerto retirado da obra com que esta californiana de origem portuguesa venceu o prémio "Drue Heiz Literature Prize". Boas leituras!

Quando Daniel desceu de pijama vestido, George disse: Dá já meia volta e toca a ir para a cama, miúdo.
Não, papá, vou ficar a ver contigo.
Vais mas é já direitinho para a cama.
A mamã disse que eu podia ficar contigo se quisesse. Disse que as orquídeas estavam a fazer-me bem.
Estou a ver que a mamã é uma hippie permissiva. Deixa-se as crianças fazer o que lhes apetece e elas perdem o rumo na vida.
Ela é o quê?
Nada. Hippie é o tipo de pessoa que todos nós éramos quando pensávamos que tudo ia acabar em bem, porque era esse o nosso desejo.
Ah! Julguei que a mamã era de Portugal, disse Daniel, sem compreender muito bem o que o pai estava a dizer.
E era. Veio para cá porque, quando éramos mais novos, a Califórnia era um sítio fantástico para se ser hippie. Mas não falemos de nós. Conversemos antes sobre ti, amigão. Como é que as orquídeas estão a fazer-te bem exactamente?
Não sei. A Irmã Angela diz que estão.
E estão?
Eu desenhei umas mãos grandes de urso a segurar numa.
Estou a ver. Fantástico. E como é que achas que isso te faz bem, amigão?
Daniel suspirou profundamente, para indicar que só queria estar ao lado dele e não ter de dissecar tudo o que diziam. Levantou uma ponta do cobertor que tapava o pai e enfiou-se por baixo.
O pai estava quente.
George pôs o braço à sua volta e recostou-se contra o apainelado da parede. Maria Luísa e a professora chamavam-lhe mãos de monstro, mas Daniel dizia que eram mãos de urso. George mal conseguia descortinar o que devia chamar às coisas, quanto mais como repará-las. Que podia ele chamar ao estender do braço, naquela ocasião, e vê-lo transformar-se numa polpa esfanicada sob o efeito de uma bala que continuou a sua trajectória, indo explodir no seu companheiro? O braço estava a envelhecer muito mais depressa do que o resto do seu corpo, os pêlos já prematuramente brancos. Nunca imaginara que partes da mesma pessoa pudessem envelhecer a ritmos diferentes. Era uma coisa que via, mas não podia reparar, como via que aquilo que Daniel desenhava era um símbolo qualquer da dor do pai: mãos desligadas, porque queriam escapar ao braço coberto de pêlos brancos.
Diz-me o que achas que as tuas mãos de urso estavam a fazer ao segurar na orquídea, disse George.
Oh, papá. Daniel esticou as pernas com uma pancada debaixo do cobertor. São mãos. Era uma flor. Uma flor não pode ser só uma flor?
Quem dera que fosse verdade. Mas enquanto Deus não decidir falar directamente connosco, receio bem que tenhamos de nos questionar sobre o que representam as coisas. Sinto muito que seja esta a regra, mas não fui eu que a inventei.
Daniel respirou suavemente. O pai parecia estar outra vez a dizer maluqueiras. Estava furioso consigo mesmo por ter falado à mãe daquele desenho estúpido e com a Irmã Angela por ter dito que era bom. Dava ideia de que o pai havia de ir parar ao Inferno por pôr em causa as regras de Deus. Não é que Daniel estivesse seguro de acreditar em Deus. Pronto, pensou em voz alta dentro da cabeça. Agora ia para o Inferno como pai. A mãe e Deidre e o Mark e o Alexander iam provavelmente para o Céu e teriam de lhes mandar de comer.

Katherine Vaz, “Como Cultivar Orquídeas se Jardins: um Manual”, in Fado e Outras Histórias

domingo, setembro 26, 2004

Socráticos

Muita gente separa o pensamento grego em duas fases, intercaladas por um filósofo de que se sabe tão pouco: Sócrates. Comummente conhecido como “moscardo”, Sócrates não se terá dado ao trabalho de deixar obra escrita, talvez por isso deixando uma marca tão impressiva em tantos contemporâneos.
Os pensadores helénicos antes dele receberam a etiqueta de pré-socráticos; curiosamente, nenhum filósofo posterior mereceu o epíteto de pós-socrático ou mesmo socrático. Pelo simples motivo de que não era preciso. A partir de Sócrates, o racionalismo tornou-se tão natural como respirar.
Infelizmente para nós, no nosso panorama político, talvez não haja pré-socráticos, mas vai haver, de certeza, socráticos e pós-socráticos. José Sócrates dificilmente se tornará um marco incontornável do pensamento político; a muito custo conseguirá deflagrar uma chama que só pede uma pequena centelha; mas, por agora, parece ser a única pessoa capaz de liderar uma alternativa a este lodaçal que, lenta e inexoravelmente, vai tingindo a nossa vida, ameaçando mesmo a fímbria das nossas almas.
Verdadeiramente surpreendente foi o reaparecimento de Manuel Alegre, uma verdadeira Fénix Renascida da liberdade! Como ficaria bem esse desassombrado vate no palácio de Belém!

OBS.: Um Poeta pode ser Presidente da República? Um Presidente da República pode ser poeta? A vida pode ser vivida?

sábado, setembro 25, 2004

PEREGRINAÇÃO

Ziguezagueantes
Patinadores infatigáveis
Meus dedos peregrinos
Em latitudes tropicais

Hesitações
Aturdimentos
Farejar o ar e sentir o espasmo

É serena a linha do horizonte
No seu ondular de cumplicidade
E perdição

Pálpebras encandescidas
Abrem portas para o espanto
E desfazem labirintos com um cravar de unhas


Mito, 03/05/2001


sexta-feira, setembro 24, 2004

Sugestão Gastronómica (“Do not try this at home”)

Receita do país impossível ou “Como foi que fomos comidos”

Pegue-se num playboy com rutilâncias mediáticas e deixe-se a marinar em incontinência de soundbytes com um cálice de licor de São Bento. Pegue-se num empertigado ditadorzinho de opereta e reserve-se na caserna, rodeado de mocetões vestidos de verde.

Ao fim de dois anos, coloque-se as duas “peças” num recipiente de ir ao forno em forma rectangular recortada. Sirva-se no Bagão-restaurante, a bordo de um comboio em marcha-atrás, acompanhado de doses generosas de cicuta. E pronto, aí têm o “País Impossível”, onde não cai a Carmo nem o Trindade.
É fácil, mas não é barato.
Vai mesmo sair muito caro.

NOTA: No Bagão-restarante, a ementa é variada e extensíssima. Peça a lista, mas não tenha pressa, que houve um erro informático e as cozinheiras estão a passá-la à mão.

Cibernautas de todos os planetas

Cibernautas de todos os planetas: uni-vos! Juntai os vossos esforços, mobilizai a vossa sageza, envergai a vossa argúcia e espalhai pelos mil cantos das galáxias: evitai parar no mitografias, blog altamente prejudicial à saúde mental e susceptível de criar dependência. Beware!

Nota: não se garante total protecção contra a veia poética do blogger. É até possível que surja um ou outro poema.